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Channel: políticas anais | Cultura e Sexualidade
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Chuca: subversiva ou produto de mais uma norma sobre o sexo anal?

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Fábio Fernandes

Nós falamos muito de sexo. As músicas, as mídias, as artes, as ciências, a sociedade como um todo fala verborragicamente sobre sexo, sobre transar, foder, gozar. Consumimos muito pornô, cada vez mais. Mas o que esse volume imenso de discursos sobre práticas sexuais revela sobre nós mesmos? Qual a provocação que grita (espero inclusive que seja de prazer) nesses discursos? Quais corpos e práticas estão/são incluídas e legitimadas, em detrimento de outras que, sob uma leitura e referência do que é normal, saudável e “gostoso”, são consideradas anormais, imorais, sujas, asquerosas: abjetas.

Começo esse meu texto concluindo desde já que esse incessante falar, falar e falar sobre sexo é também uma estratégia de estabelecimento do que é normal, humano e do que é errado, anormal e inumano. O cu, por exemplo, já foi aqui refletido como um órgão sexual em muitas ocasiões (aqui e aqui), inclusive já foi ressaltado que esse ânus pode pôr em jogo muitas questões relativas à raça/etnia, gênero, sexualidade, classe e até mesmo religião. Um cu branco se difere de um cu negro, assim como um cu rico ou pobre, cisgênero ou trans, ateu ou evangélico, entre outras variantes. Há aí uma vigilância acentuada a depender de e em qual corpo se encontra o cu.

E é mais uma vez pensando a respeito do sexo anal, do cu e do corpo que o carrega, que me impulsiono na escrita deste texto. Estava com um grupo de amigos comentando sobre a chuca e surgiu ali uma provocação sobre essa prática de limpeza e higienização de ânus e retos. Pensei e lancei a provocação do quanto esse referido discurso de limpeza e higienização nos incita a exigir uma certa “pureza” dos parceiros e parceiras, ou até mesmo um certo manual rígido sobre a prática sexual.

A chuca (ou enema) funciona como uma lavagem, na qual introduz-se água no canal do ânus e depois ela é expelida em uma operação repetida até que tudo esteja bem limpo. Algumas pessoas utilizam mangueiras, outras garrafinhas de água e já há até produtos tecnológicos específicos para a realização da chuca (não necessariamente o enema das farmácias, utilizado para lavagens em contextos médicos, mas sim equipamentos pensados para a prática sexual anal).

Ouso dizer que o ritual que envolve a chuca está inserida em uma cultura erótica, um conhecimento até transmitido de geração a geração. As gueis mais experientes ensinam às mais novas como se deve fazer a chuca e o quanto ela é indispensável para realizar o sexo anal. Há vários textos na internet tratando dessa prática. Muitas mulheres também consultam as gueis ou outra pessoa capacitada para aprender sobre a chuca e fazer bonito durante o sexo anal.

Já ouvi de amigos a seguinte frase: “não vou nem à padaria sem estar chucada, vai que algo aconteça no caminho? Precisamos estar sempre preparadas!”. Mas aí eu lanço minha provocação: até que ponto a prática da chuca serve apenas para garantir uma certa comodidade durante o ato sexual e, para além disso, também não incide sobre os corpos numa espécie de prisão, limitação e esforço para atender a um modelo higienizante de desejo e prazer? (um modelo único, aliás).

Minha intenção aqui não é demonizar ou estigmatizar uma prática, não é gritar “LIBERTE-SE DA CHUCA!”, mas cogitar sobre imposições, normas e noções rígidas de higienização/pureza que podem estar atreladas à chuca. A consequência-mor do descumprimento dela estaria na possibilidade de passar cheque, ou seja, que fezes possam “sujar” o ato sexual. Aliás, porque somente o cu é considerado o lugar da sujeira? Outras partes do corpo, se não forem limpas também podem transmitir doenças e estarão… sujas. Penso que atravessa por aí um discurso opressor sobre o cu, produzindo nele o lugar por excelência da abjeção, nojento e condenado por discursos médicos sanitaristas, religiosos e moralistas.

O medo de passar cheque inclui muitas vezes uma rígida (e insana) vigilância até sobre a dieta alimentar: “se eu for dar hoje, eu não posso me acabar de comer, tem que ser algo leve e que não me deixe cheio, pesado”. Alimentos específicos e laxantes não são incomuns nesse quase esquema tático de guerra. E se por acaso, independente do motivo, não ocorra o ato sexual, fica em alguns a terrível sensação de chuca perdida (“ah, bicha! E quem nunca perdeu uma chuca?”).

Perpassaria pela chuca o absorvimento desses mesmos discursos que confinam corpos e práticas ao local da impossibilidade e de uma não humanidade? Pode-se também pensar a chuca como uma possibilidade de gozo numa norma opressora? Ou então em uma relação de poder que fortalece opressões e produzem corpos “sujos” e “limpos”, hierarquizando-os? São muitas as questões que me inquietam.

O cu definitivamente não é um lugar neutro, tampouco não o é o que dele e nele se faz. Eu lanço essas questões para desestabilizar noções rígidas de prazer, desejo e dos caminhos para se chegar até lá e por isso questiono: a chuca é indispensável ao prazer anal? Seria mais um instrumento de vigilância?

Podemos, portanto, pensar no sexo anal como uma forma de subversão que propicia a desterritorialização do sexo pênis/vagina, ao potencializar o cu como zona erógena? Muitos afirmam não se importar se o cu está chucado ou não, mas reforçam a ideia de que o limpo é sempre mais prazeroso. Até porque o cu não é apenas penetrado pelo pênis, há quem goste (e muito!) de por a língua, os lábios e o rosto ali (no chamado beijo grego) e por isso existe toda uma geografia da sexualidade apontando quais caminhos são os corretos para se alcançar o prazer.

Reforço também que essa demasiada limpeza da região anal é uma tentativa de higienizar o cu de modo que ele deixe de ser o cu e não remeta à ideia do senso comum sobre ele, isto é, apenas um excretor de fezes.

A chuca faria parte de técnicas, – aí também incluo a depilação, esfoliação, a possibilidade de implantação de próteses e a imensa quantidade de exercícios físicos para aumentá-lo – que associariam o corpo ao que é entendido como “corpo/órgão sexual feminino”? O cu ideal para o sexo anal seria então aquele mais próximo desse modelo de bunda grande, lisa, cheirosa e limpa?

Afinal, um cu peludo seria impensável para muitos (daí surgem máximas como “quer o cu e ainda quer raspado?”): há inúmeros recursos tecnológicos e especialistas na tal da “depilação íntima”, pois aquela bunda, aquele cu que não está lisinho seria também… sujo. Ah, mas bunda mole também nem pensar, ela tem que estar durinha, deve ter volume, ser preenchida de uma aBUNDÂncia visível, palpável. São muitas as limpezas e normas que incidem sobre o cu e a bunda, para além da chuca.

Eu falo aqui de cus que não querem ser fechados para a impossibilidade de prazeres e vivências; enuncio práticas que suplantam e derrubam uma possível castração anal e questionam pedagogias corpóreas e sexuais que produzem corpos… e cus. Reitero mais uma vez a provocação: há um gozo e uma potência na chuca ou ela por si própria é a incidência de uma norma?

Não pretendo esboçar respostas definitivas a essa questão, apenas gritar pela ampliação e potencialização de vias de prazer que não estejam atreladas necessariamente aos manuais do “sexo saudável e ideal”. Os cus chucados podem sim representar a potência do prazer e gozo anal, mas não devem ser o parâmetro e O modelo único para alcançá-los. Esse (quase)manifesto escrito por mim é, portanto, por corpos e cus livres, empoderados e possíveis, para além de técnicas e discursos limitantes e opressivos. Mas também é pelo sexo anal, pelos prazeres, pelos gozos, pela proliferação de possibilidades. Apenas. Experimente. Permita-se.

*Com contribuições e reflexões dos meus amigos especialistas em cus e chucas, Gilmaro Nogueira e Julio César Sanches.


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